Por Laura lucy Dias
Na data de
hoje recebi um item pelo correio que me deixou estupefata, pois foi ao
buscar raridades na internet que eu tive a oportunidade de encontrar este
original, escrito no ano de 1926. O que me chamou a atenção foi o nome do
autor: Ayrton Lobo. Não conhecia mais nada escrito por ele, apenas o conhecia
por leituras de história na qual ele fora personagem, pertencente a Monteiro
Lobato, e por isso resolvi aqui postar e deixar todos cientes de tamanha
grandeza da obra de outrem, e que ela vai além do que possamos imaginar.
O homem desdobrado
Por Ayrton Lobo
Conheci Dr.
Lewis através dos jornais, e pela época perambulava pela Europa, no ano de
2227. O que fazia eu lá? Pois bem, sou um brasileiro de novo território, bem
sucedido em minha carreira de pesquisas na área da nutrição. Eu desenvolvo
alimentos mais ricos no que eu puder enriquecer. Nada de especial, a nós
brasileiros o mundo deixou o legado do desenvolvimento de alimentos e
cosméticos. Não que não tenhamos nada mais para oferecer, porém é o que fazemos
de melhor!
Realmente eu
sou bem sucedido, sou respeitado por todos no meu país, mas aqui na Europa eu
não sou ninguém, sou conhecido por poucos. Conheci os trabalhos de Dr. Lewis
pelo jornal, e como participo de rodas influentes do ramo da ciência eu acabei
por ter contato pessoal e direto com ele. Nada além de festas. Homem complexo,
bastante calado. Acredito que naquela mente as coisas que se passam iam além da
mediocridade de nossa realidade.
Já no ano de
2227, ano passado, o doutor abriu para o nosso deleite a inscrição para cobaia
de um projeto diferente de todos: O desdobramento humano. Pelo que entendi é
uma operação no cérebro que permite o homem operado agir como um reptil, com
seus olhos e ouvidos independentes uns dos outros, com a condição de ouvir e
ver coisas diversas ao mesmo tempo, com o cérebro a processar todas as informações
de uma vez e independentemente. Coisa incrível e com a qual fiquei abismado,
compareci à palestra do professor dada apenas aos candidatos para a
experiência. Claro que para poder se candidatar havia a necessidade de ter um
currículo mínimo. O que achei interessante foi o fato de as inscrições serem
abertas apenas para não europeus e não americanos do norte. Talvez por ser menos
sentida a perca de um homem tido como inferior.
De fato sou
fisicamente comum: altura de 1,80, 73 kg, branco, olhos castanhos, assim como
os cabelos que são encaracolados e difíceis de domar na moda atual, nada de
harmônico se refere a mim, apenas o nariz é grande, o restante do rosto pequeno
demais para suportá-lo. Pois bem, mais que isso, o meu nome é mais comum na
região menos privilegiada do globo: João da Silva.
Para a minha
maior surpresa fui selecionado num grupo restrito para os exames e fomos para
as mais estranhas e difíceis provas de que poderíamos ser o eleito. Tinha
comigo asiáticos, indianos, africanos, latinos em geral. Provas psicológicas,
psicomotoras, entrevistas, radiografias, sondas, mapeamento cerebral,
mapeamento do DNA... Nem me lembro mais de tudo, os remédios que tomamos, os
contrates, foi bastante difícil. Por fim, estou eu aqui para a operação. Hoje
serei um homem melhor que qualquer homem no mundo!
- Senhor
José?
- Sim.
- Chegou o
momento da preparação, venha para a sala de assepsia.
Agora estava
perto, fico tenso em imaginar-me como um camaleão, que consegue prestar atenção
em mais de uma coisa em seu ambiente, com a possibilidade de defender-se de
seus predadores ao mesmo tempo em que se alimenta, quais as coisas que eu não
poderia fazer depois de tornar-me um homo
elevado à sexta potencia?!
- Olá José,
está preparado para mudar o mundo?
- Sim doutor,
eu espero ansioso para poder usar as novas faculdades que me darás!
- Certo
rapaz, o anestesista irá lhe aplicar a dose necessária para o período da
operação, você ficará inconsciente e só acordará amanhã pela hora do almoço, e
então conversaremos novamente! Até mais, meu caro.
- Ok! –
respondi enquanto era picado e sentia uma coisa que me fazia parar de sentir.
De fato
acordei na tarde do outro dia, mas estavam vendados os meus olhos e meus
ouvidos tinham tampões que me impediam de me comunicar e de enxergar. Tentei me
movimentar e senti-me preso, atado à cama que vibrou com minhas tentativas de
me soltar. Foi então que senti mãos me tocarem e desatarem as faixas de minha
cabeça, e libertarem o ouvido e olho esquerdo.
Comecei a
ouvir e a enxergar e não senti qualquer diferença no que acontecia comigo,
perguntei a jovem enfermeira que me desamarrava e ela começou a me informar:
- Suas
orientações são para que não desate as faixas que ficaram, pois o processo de
recuperação requer que você estabeleça uma nova interação com o cérebro. As
ordens do Dr. Lewis são de que por alguns dias você seja estimulado pelas diferentes
formas que se farão, para que seu cérebro se acostume com cada lado
independente do outro, e para que não haja problemas ele virá ter contigo para
a primeira fase de treinamento.
- Ok, eu
aguardarei.
O que pude
fazer em seguida foi assistir um pouco de televisão enquanto comia. A dor de
cabeça era fenomenal, e pelas informações que fui conseguindo, descobri que
elas passariam na próxima semana, gradativamente. Espero que sim, pois é como
se houvesse uma onda ultrassônica zumbindo nos recônditos de meus pensamentos
de forma quase física, quase vital.
Horas se
passaram até que o médico chegasse, passei esse tempo imaginado todas as
possibilidades que eu tinha de ser incrível. Eu seria amado... será que
passaria esses genes aos meus filhos? Quanto dinheiro, conhecimento, status eu poderia ganhar...?
Com o Doutor
foi uma maratona de leituras, blocos de imagens, escrever, desenhar e
confrontar tudo o que eu fizera nas preliminares da escolha do candidato. Apesar
daquela dor de cabeça que persistia. Acredito que queriam comprovar que eu funcionava
minimamente. Tudo era gravado, tudo era registrado, eu era o macaco do
laboratório, com mil estagiários e suas pranchetas a observar e avaliar.
Passaram-se
dias entre um olho e outro, a mesclar os ouvidos, só um ouvido, um olho, todas
as possíveis combinações de sentidos para testar e acostumar-me a utilizar
separadamente todas as funções, sem fundir o meu cérebro.
Enfim chega o
dia de minha liberação, claro que ainda um pouco tímida, com uns poucos
repórteres, alguns representantes importantes da sociedade, muitas enfermeiras
e o Dr. Lewis. Liberaram primeiramente meus olhos, e o que eu pude ver foram
coisas diferentes, ângulos diferentes, cada olhos para um lugar distinto, sob o
meu mando, aquilo foi incrível! Pude ver alguns olhares de asco e comentários
sobre o efeito estético de utilizar os olhos assim, mas não me importava, não
era isso em que me focava. A sensação era indescritível, por isso eu não irei
tentar sequer!
A dor de
cabeça que me acompanhava era já comum, diária, mesmo após mais de três
semanas. Agora com a luz aos dois olhos, pareceu-me que piorara, mas a excitação
era tamanha que nem a percebia.
Logo, quando
as pessoas voltavam a ficar ansiosas, como se fosse um show de maravilhas
comandado por um médico cheio de suspense, foram liberados os meus ouvidos. Eu
não só conseguia ouvir de dois lugares diferentes e de acordo com o que eu selecionava
como poderia focar a audição nos sons mais baixos e distantes, e ouvi-los nitidamente!
Eu era um Homo em sexta potência! Estava acima de
todos os que me observavam, mas ainda era como uma criança a aprender a
utilizar as minhas funções de forma harmônica. Mas qual não foi a minha
surpresa enquanto eu escrevia em uma folha na escrivaninha, para ser gravado,
fotografado e observado e um bichano pulou em meu colo, um persa peludo e
mesclado, não resisti, e enquanto eu escrevia e observava a escrita com um olho
e uma mão, a outra mão e olho se colocavam a acarinhar o animal.
Foi algo tão
natural que eu não entendi o motivo de todos ficarem estupefatos, mas foi
aquela foto que mais se divulgou! Eu era notícia em todo lugar: nas casas as
pessoas me conheciam, nas ruas me viam e reagiam apenas pela tela. Eu não via a
hora de perambular por aí e poder sentir isso pessoalmente!
E foi o que
fiz, fui viver, sob os cuidados semanais do Dr. Lewis, e agora moraria na
Europa pelos próximos anos! Isso é mais que um presente! E eu mereço!
O primeiro
lugar para qual eu me dirigi foi a um café, pois eu amo café! Levei comigo um
livro que começara a ler antes da operação e ainda não o findara, e uma revista
que falava apenas sobre a cirurgia, um almanaque especial, para me inteirar.
Sentei-me e
enquanto fazia a leitura da revista fiz o pedido para uma bela garçonete que me
reconhecera, mas manteve-se distintamente calma e respeitosa. Isso foi
interessante. Li por volta de uns cinco minutos com cada olho em uma leitura
diferente, e meu cérebro assimilava cada uma, e meus ouvidos se mantinham
ocupados em receber mensagens sobre as conversas paralelas, que logo se
dirigiram diretamente a mim. Dei meus primeiros autógrafos, até alguns
telefones eu consegui nesta tarde simples e quente de uma primavera gentil!
Conheci
algumas donas, fiz alguns trabalhos de revisão em artigos nutricionais,
participei de alguns debates, li muito mais do que antes. Vivi muito melhor e
mais do que antes! Sempre à rua enquanto podia, eu vivia como uma celebridade.
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Todos à minha
volta eram estranhos, com seus deformados rostos, passavam por mim para me
observar e esperavam sempre o momento certo para que se fizesse um bote,
queriam me matar, queriam meu segredo. Todos queriam ser eu, me odiavam pela
minha excelência! A única boa notícia para mim era a de que a dor de cabeça se
extinguira, eu nem percebera, mas ao ser analisado pelos médicos, fui
questionado e levado a perceber!
Pois é, eu fui
capturado depois de dois meses de fugas, disfarces, armadilhas... não posso
confiar em ninguém. Tive que matar algumas pessoas e queimar algumas casas. Se me
pegassem, iriam querer me estudar, desmembrar-me... reconectar meus sentidos. Eu
não podia permitir.
Mas
pegaram-me, mesmo com meus astutos ouvidos e olhos que apanham quaisquer
movimentos de meus inimigos. O Dr. Lewis falou comigo há dias, disse que se arrepende
de tudo que fizera e que o estudo revelara que o cérebro humano não é capaz de
assimilar tantas informações, e que desenvolver psicoses era uma condição
óbvia. Isso ele diz por eu ser brasileiro! Arrepende-se de não ter operado a si
próprio, isso sim!
O diagnóstico
deles é de que eu estou paranoico, com tendências esquizofrênicas, claro.
Desculpas para tentarem usurpar-me os sentidos. Este quarto de hospício não me
segurará, sou um homo de sexta
potencia. Vou me livrar disso aqui e eles estarão perdidos! Sou a joia desta
sociedade e eles têm medo de que eu me reproduza e gere uma raça superior às
dos brancos, negros e das sabinas! Mas
eles não sabem que eu apenas pretendo a revolução! Hoje não foi possível, mas
amanhã eu estarei livre, e será antes que consigam me destruir!
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