quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Encontrado o texto “O Homem desdobrado”



Por Laura lucy Dias
Na data de hoje recebi um item pelo correio que me deixou estupefata, pois foi ao buscar raridades na internet que eu tive a oportunidade de encontrar este original, escrito no ano de 1926. O que me chamou a atenção foi o nome do autor: Ayrton Lobo. Não conhecia mais nada escrito por ele, apenas o conhecia por leituras de história na qual ele fora personagem, pertencente a Monteiro Lobato, e por isso resolvi aqui postar e deixar todos cientes de tamanha grandeza da obra de outrem, e que ela vai além do que possamos imaginar.


O homem desdobrado

Por Ayrton Lobo

Conheci Dr. Lewis através dos jornais, e pela época perambulava pela Europa, no ano de 2227. O que fazia eu lá? Pois bem, sou um brasileiro de novo território, bem sucedido em minha carreira de pesquisas na área da nutrição. Eu desenvolvo alimentos mais ricos no que eu puder enriquecer. Nada de especial, a nós brasileiros o mundo deixou o legado do desenvolvimento de alimentos e cosméticos. Não que não tenhamos nada mais para oferecer, porém é o que fazemos de melhor!

Realmente eu sou bem sucedido, sou respeitado por todos no meu país, mas aqui na Europa eu não sou ninguém, sou conhecido por poucos. Conheci os trabalhos de Dr. Lewis pelo jornal, e como participo de rodas influentes do ramo da ciência eu acabei por ter contato pessoal e direto com ele. Nada além de festas. Homem complexo, bastante calado. Acredito que naquela mente as coisas que se passam iam além da mediocridade de nossa realidade.

Já no ano de 2227, ano passado, o doutor abriu para o nosso deleite a inscrição para cobaia de um projeto diferente de todos: O desdobramento humano. Pelo que entendi é uma operação no cérebro que permite o homem operado agir como um reptil, com seus olhos e ouvidos independentes uns dos outros, com a condição de ouvir e ver coisas diversas ao mesmo tempo, com o cérebro a processar todas as informações de uma vez e independentemente. Coisa incrível e com a qual fiquei abismado, compareci à palestra do professor dada apenas aos candidatos para a experiência. Claro que para poder se candidatar havia a necessidade de ter um currículo mínimo. O que achei interessante foi o fato de as inscrições serem abertas apenas para não europeus e não americanos do norte. Talvez por ser menos sentida a perca de um homem tido como inferior.

De fato sou fisicamente comum: altura de 1,80, 73 kg, branco, olhos castanhos, assim como os cabelos que são encaracolados e difíceis de domar na moda atual, nada de harmônico se refere a mim, apenas o nariz é grande, o restante do rosto pequeno demais para suportá-lo. Pois bem, mais que isso, o meu nome é mais comum na região menos privilegiada do globo: João da Silva.

Para a minha maior surpresa fui selecionado num grupo restrito para os exames e fomos para as mais estranhas e difíceis provas de que poderíamos ser o eleito. Tinha comigo asiáticos, indianos, africanos, latinos em geral. Provas psicológicas, psicomotoras, entrevistas, radiografias, sondas, mapeamento cerebral, mapeamento do DNA... Nem me lembro mais de tudo, os remédios que tomamos, os contrates, foi bastante difícil. Por fim, estou eu aqui para a operação. Hoje serei um homem melhor que qualquer homem no mundo!

- Senhor José?

- Sim.

- Chegou o momento da preparação, venha para a sala de assepsia.

Agora estava perto, fico tenso em imaginar-me como um camaleão, que consegue prestar atenção em mais de uma coisa em seu ambiente, com a possibilidade de defender-se de seus predadores ao mesmo tempo em que se alimenta, quais as coisas que eu não poderia fazer depois de tornar-me um homo elevado à sexta potencia?!

- Olá José, está preparado para mudar o mundo?

- Sim doutor, eu espero ansioso para poder usar as novas faculdades que me darás!

- Certo rapaz, o anestesista irá lhe aplicar a dose necessária para o período da operação, você ficará inconsciente e só acordará amanhã pela hora do almoço, e então conversaremos novamente! Até mais, meu caro.

- Ok! – respondi enquanto era picado e sentia uma coisa que me fazia parar de sentir.

De fato acordei na tarde do outro dia, mas estavam vendados os meus olhos e meus ouvidos tinham tampões que me impediam de me comunicar e de enxergar. Tentei me movimentar e senti-me preso, atado à cama que vibrou com minhas tentativas de me soltar. Foi então que senti mãos me tocarem e desatarem as faixas de minha cabeça, e libertarem o ouvido e olho esquerdo.

Comecei a ouvir e a enxergar e não senti qualquer diferença no que acontecia comigo, perguntei a jovem enfermeira que me desamarrava e ela começou a me informar:

- Suas orientações são para que não desate as faixas que ficaram, pois o processo de recuperação requer que você estabeleça uma nova interação com o cérebro. As ordens do Dr. Lewis são de que por alguns dias você seja estimulado pelas diferentes formas que se farão, para que seu cérebro se acostume com cada lado independente do outro, e para que não haja problemas ele virá ter contigo para a primeira fase de treinamento.

- Ok, eu aguardarei.

O que pude fazer em seguida foi assistir um pouco de televisão enquanto comia. A dor de cabeça era fenomenal, e pelas informações que fui conseguindo, descobri que elas passariam na próxima semana, gradativamente. Espero que sim, pois é como se houvesse uma onda ultrassônica zumbindo nos recônditos de meus pensamentos de forma quase física, quase vital.

Horas se passaram até que o médico chegasse, passei esse tempo imaginado todas as possibilidades que eu tinha de ser incrível. Eu seria amado... será que passaria esses genes aos meus filhos? Quanto dinheiro, conhecimento, status eu poderia ganhar...?

Com o Doutor foi uma maratona de leituras, blocos de imagens, escrever, desenhar e confrontar tudo o que eu fizera nas preliminares da escolha do candidato. Apesar daquela dor de cabeça que persistia. Acredito que queriam comprovar que eu funcionava minimamente. Tudo era gravado, tudo era registrado, eu era o macaco do laboratório, com mil estagiários e suas pranchetas a observar e avaliar.

Passaram-se dias entre um olho e outro, a mesclar os ouvidos, só um ouvido, um olho, todas as possíveis combinações de sentidos para testar e acostumar-me a utilizar separadamente todas as funções, sem fundir o meu cérebro.

Enfim chega o dia de minha liberação, claro que ainda um pouco tímida, com uns poucos repórteres, alguns representantes importantes da sociedade, muitas enfermeiras e o Dr. Lewis. Liberaram primeiramente meus olhos, e o que eu pude ver foram coisas diferentes, ângulos diferentes, cada olhos para um lugar distinto, sob o meu mando, aquilo foi incrível! Pude ver alguns olhares de asco e comentários sobre o efeito estético de utilizar os olhos assim, mas não me importava, não era isso em que me focava. A sensação era indescritível, por isso eu não irei tentar sequer!

A dor de cabeça que me acompanhava era já comum, diária, mesmo após mais de três semanas. Agora com a luz aos dois olhos, pareceu-me que piorara, mas a excitação era tamanha que nem a percebia.

Logo, quando as pessoas voltavam a ficar ansiosas, como se fosse um show de maravilhas comandado por um médico cheio de suspense, foram liberados os meus ouvidos. Eu não só conseguia ouvir de dois lugares diferentes e de acordo com o que eu selecionava como poderia focar a audição nos sons mais baixos e distantes, e ouvi-los nitidamente!

Eu era um Homo em sexta potência! Estava acima de todos os que me observavam, mas ainda era como uma criança a aprender a utilizar as minhas funções de forma harmônica. Mas qual não foi a minha surpresa enquanto eu escrevia em uma folha na escrivaninha, para ser gravado, fotografado e observado e um bichano pulou em meu colo, um persa peludo e mesclado, não resisti, e enquanto eu escrevia e observava a escrita com um olho e uma mão, a outra mão e olho se colocavam a acarinhar o animal.

Foi algo tão natural que eu não entendi o motivo de todos ficarem estupefatos, mas foi aquela foto que mais se divulgou! Eu era notícia em todo lugar: nas casas as pessoas me conheciam, nas ruas me viam e reagiam apenas pela tela. Eu não via a hora de perambular por aí e poder sentir isso pessoalmente!

E foi o que fiz, fui viver, sob os cuidados semanais do Dr. Lewis, e agora moraria na Europa pelos próximos anos! Isso é mais que um presente! E eu mereço!

O primeiro lugar para qual eu me dirigi foi a um café, pois eu amo café! Levei comigo um livro que começara a ler antes da operação e ainda não o findara, e uma revista que falava apenas sobre a cirurgia, um almanaque especial, para me inteirar.

Sentei-me e enquanto fazia a leitura da revista fiz o pedido para uma bela garçonete que me reconhecera, mas manteve-se distintamente calma e respeitosa. Isso foi interessante. Li por volta de uns cinco minutos com cada olho em uma leitura diferente, e meu cérebro assimilava cada uma, e meus ouvidos se mantinham ocupados em receber mensagens sobre as conversas paralelas, que logo se dirigiram diretamente a mim. Dei meus primeiros autógrafos, até alguns telefones eu consegui nesta tarde simples e quente de uma primavera gentil!

Conheci algumas donas, fiz alguns trabalhos de revisão em artigos nutricionais, participei de alguns debates, li muito mais do que antes. Vivi muito melhor e mais do que antes! Sempre à rua enquanto podia, eu vivia como uma celebridade.



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Todos à minha volta eram estranhos, com seus deformados rostos, passavam por mim para me observar e esperavam sempre o momento certo para que se fizesse um bote, queriam me matar, queriam meu segredo. Todos queriam ser eu, me odiavam pela minha excelência! A única boa notícia para mim era a de que a dor de cabeça se extinguira, eu nem percebera, mas ao ser analisado pelos médicos, fui questionado e levado a perceber!

Pois é, eu fui capturado depois de dois meses de fugas, disfarces, armadilhas... não posso confiar em ninguém. Tive que matar algumas pessoas e queimar algumas casas. Se me pegassem, iriam querer me estudar, desmembrar-me... reconectar meus sentidos. Eu não podia permitir.

Mas pegaram-me, mesmo com meus astutos ouvidos e olhos que apanham quaisquer movimentos de meus inimigos. O Dr. Lewis falou comigo há dias, disse que se arrepende de tudo que fizera e que o estudo revelara que o cérebro humano não é capaz de assimilar tantas informações, e que desenvolver psicoses era uma condição óbvia. Isso ele diz por eu ser brasileiro! Arrepende-se de não ter operado a si próprio, isso sim!

O diagnóstico deles é de que eu estou paranoico, com tendências esquizofrênicas, claro. Desculpas para tentarem usurpar-me os sentidos. Este quarto de hospício não me segurará, sou um homo de sexta potencia. Vou me livrar disso aqui e eles estarão perdidos! Sou a joia desta sociedade e eles têm medo de que eu me reproduza e gere uma raça superior às dos brancos, negros e das sabinas! Mas eles não sabem que eu apenas pretendo a revolução! Hoje não foi possível, mas amanhã eu estarei livre, e será antes que consigam me destruir!

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