O sol começava a entrar no
quarto e acabava por incomodar Kafka, que jazia na cama além de seu horário
habitual de se levantar para ter o desjejum com a família. Ele olha para o
relógio e vê que ainda não era a hora de estar à mesa, mas ele já deveria ter
se aprontado para se dirigir à cozinha.
Consternado em saber de seu
atraso, pensa em levantar, mas aí percebe como sempre era estranho fazê-lo, ele
não se levantaria simplesmente. Puxa o seu cobertor e observa as suas
perninhas, frágeis e inúteis, que não mais lhe serviam para alguma coisa. Para
e não pensa em mais nada, apenas se deixa na cama, sem pensar, sem sentir.
Mas é preciso levantar, antes
que o pai venha buscá-lo. Ele pensa em levantar, mas não faz nada. Fica ali,
olhando para o teto, com as costas na cama. Então a sua irmã Margaret o chama
pela porta, baixinho:
- Kafka, já está pronto? Já
vamos nos reunir à mesa!
Ele responde baixo, mas ainda
assim de forma audível:
- Já vou! – mas o que sai é um
grunhido. Ele às vezes se esquece de que não é mais um rapaz capaz de se
comunicar de maneira comum a todos.
Depois do acidente que ocorrera
há quatro anos ele estava condenado a esta metamorfose. Então ele esforça-se e
puxa a cadeira para se colocar nela, vestir-se com tais dificuldades era
emocionalmente doloroso, por isso passou a vestir roupas simples, calças de
elástico na cintura e camisetas, com seus tênis que só serviam para cobrir os
pés medonhos.
Ele se dirige a porta e a
destranca, afasta a cadeira e dirige-se para fora, dali ele pode ver a sua irmã
um ano mais nova, com quinze anos, já vestida e com cabelos penteados. Eles todos
eram quase louros, o pai tinha descendência alemã há umas três gerações atrás.
Por isso os nomes estranhos que têm. Ele lera a metamorfose de Franz Kafka e
resolveu dar o nome do autor ao primogênito.
Quando Margaret o viu, chamou
sua atenção para os cabelos, ele não deveria ter deixado de penteá-los. Leva-o
diretamente ao seu quarto, entra em seu banheiro e pega um pente. Não se
importa com os protestos de grunhidos do irmão. Ela sempre o olhava de forma
doce, e ele a amava muito. Ela era a única que se importava com ele de verdade
por ali.
Já postos à mesa, a mãe se
apresenta impecável, com seus longos cabelos penteados e seu busto alto num
decote admirável, impossível de se notar. O pai chega a escoltando, alto e
truculento, ele parecia ser feito de terra. Já estava em suas botas militares,
cabelos sempre cortados de forma militar para impor respeito.
Todos comem sem conversar, o pai
gosta de ler enquanto desjejua, vai folheando o jornal e se conversamos o
atrapalhamos, mas ele faz questão de que estejamos sempre reunidos nesta
refeição. Realmente Kafka não entende, ele nunca o olha, nem mesmo sem querer.
Evita-o a todo custo. A única forma de ter sua atenção é começar a grunhir. Mas
hoje ele não estava afim.
O rapaz colocou-se a comer,
maquinalmente, nada tinha gosto agradável para ele, afinal, ter sido capturado
e surrado, ter a sua língua arrancada, suas mãos queimadas e tomar um tiro que
não lhe tirou nada além dos movimentos das pernas, talvez tivesse algo a ver
com isso.
É claro que se não fosse por
isso, ainda teriam o seu reino, e o pai não estaria seguindo ordens do Patrão.
Homem desprezível que armou uma cilada para pegar o garoto de apenas doze anos,
trabalhando de olheiro naquelas férias. Ninguém deixava de trabalhar, ele só
queria ajudar o pai, mas na verdade acabou fazendo com que ele perdesse a posse
da boca, e ela fosse integrada a uma rede de bocas maior ainda.
O pai não teve escolha, para
salvar a família teve que ser mais um dos majores do Patrão. A mãe e irmã
embalavam os produtos, junto a um grupo de mulheres que se encontravam abaixo
da mansão. Elas faziam a vistoria do serviço, minha irmã aprendia com minha
mãe, durante meio período e algumas vezes por semana. O que Margaret gostava
era de dançar, queria ser bailarina, e se dedicava três vezes por semana à esta
formação.
Essa era a rotina, todos comiam,
Kafka voltava para seu quarto e o pai ia para o morro, a mãe e irmã iam para a
oficina e passavam a manhã fora. Só quem passava com ele algum tempo era a
irmã.
Ele ficava à janela quase todos
os dias, lembrava-se das coisas que vivera e não teria mais, como a filha da
vendedora de sorvetes, que sempre acabava ficando com ele, pois ela não
resistia à sua beleza, e ele gostava dela de uma maneira especial. Claro que
ficar para ele era dar uns pegas
básicos. Ele era uma criança, com um grande status
naquela comunidade, mas apenas uma criança bonita, quando tudo acontecera.
Suas tardes eram silenciosas,
ele podia ver o muro da escola que ficava bem no morro, à sua janela. Ele
estudou lá, agora se escondia quando era horário de entrada e saída dos alunos.
Ninguém o vira depois daquele acidente, apenas uma das empregadas da casa, que
acabara entrando em seu quarto para limpar, num horário não combinado no qual
ele se esquecera de trancar a porta, e ele acabara não tendo tempo de se
retirar para outro cômodo de sossego, ela ficara chocada. O olhar de nojo era
claro, ninguém deve ter tido de lhe explicar nada, porém, ela deve ter
entendido tudo. Kafka começava a achar que para o mundo lá fora o que a família
divulgava era uma família com filha única.
Kafka se sentia um animalzinho
enjaulado, mas ele amava a sua família, mesmo sendo o pai como era. A mãe não
conseguia ficar com ele sem ter uma crise de choro, então evitava fazê-lo por
muito tempo. Ele adorava o tempo que ela passava com ele, em geral cortando seu
cabelo. Era o cuidado dela para com ele.
O dia passava assim, ele na
janela, às vezes lendo, às vezes fazendo exercícios para os braços, já que não
conseguia escrever, jogar videogame, desenhar, ou nada do que gostava antes. A
televisão o entediava. Algumas vezes ele ia para a laje, olhar para o morro e
ver longínquo o mar. Mas só fazia isso em dias que sabia que o mundo estava
ocupado demais para perceberem-no.
Ele não jantava, deixava-se
ficar escondido atrás da porta durante a reunião noturna, ele percebera que
quando estava por lá não havia conversa. Aí ele não jantava para não ganhar
peso, e ficava atrás da porta, ouvindo as conversas animadas. Margaret contando
suas novas conquistas no balé, a mãe contando sobre o dia na oficina, e o que
pretendia para se fazer cada vez mais bonita e o pai não falava muito, mas dava
uma atenção carinhosa às suas garotas.
Kafka fazia isso havia quatro
anos. Até que ouviu uma conversa que estranhou, estavam querendo o encaminhar a
uma escola especial, onde ele iria morar. Ele se angustiou e pôs-se a pensar em
como parecer útil para aquele homem que era tão incisivo em suas decisões e
prático no que precisava de cada coisa em sua vida.
Pensou em passar a tentar
atirar, mas com as mãos atrapalhadas pelos nervos queimados, como faria? Ser
olheiro novamente seria inútil, com aquela cadeira que não servia para aquele
morro. Trabalhar na oficina era a mesma coisa que utilizar uma arma. O que ele
poderia fazer?
Quem veio ao seu socorro foi a
irmã e a mãe, mesmo que de leve. Deixaram de lado aquela coisa toda. Então para
poder fazer a sua parte, Kafka começou a sair de seu quarto em horários não
costumeiros nos próximos dias, se esforçando para ser útil, assustando as
empregadas que restaram dos dias bons. Num dia subiu à laje quando o Patrão
estava em uma reunião com o pai e mais outros majores.
Furiosamente o pai o repeliu.
Não tinha a noção de segurar a cadeira e o encaminhar de volta, mas de onde Kafka
estava havia muitos obstáculos e ele ficou preso. Porém o pai o enxotava com as
palavras mais ríspidas que tinha em seu repertório e acabava crescendo ao
tamanho de um gigante ao se aproximar cada vez mais, claro que o rapaz parou e
abaixou-se em sua cadeira como o animal que era. O pai percebendo que ele
precisava sair fez com que isso acontecesse, jogando alguns itens nele, como
frutas que havia na mesa farta oferecida na reunião: bananas, uvas, maçãs.
Enquanto conseguia se retirar,
só pode ouvir os homens comentando:
- Pensei que ele não tinha
sobrevivido. Que garoto horrível!
- Como você ainda o guarda em
casa?
- Deveria mandá-lo para um lugar
de monstrengos como ele! Ele seria mais feliz.
Ao descer, parecia uma salada de
frutas, a mãe veio em seu socorro, o pai descia atrás. Ambos discutem, mas ele
a retira de perto de Kafka e acaba tendo-a para si na discussão, como sempre.
Mesmo grunhindo como podia, não houve socorro, ele foi ao seu quarto e se banhou,
ficou nu e deitou-se na cama, sem saber o que fazer para provar a todos que ele
era útil, ou que ao menos não daria trabalho.
Ele se esquecera de trancar a
porta e a irmã vem para ter com ele e abre a porta de forma brusca,
assustando-o e tendo um instante da visão de seu corpo desfeito pelas
queimaduras, e a única reação que ele teve foi a de se jogar para o lado da
cama no chão, de cabeça, para que ela não o observasse daquela maneira.
Ela veio para tentar ajudá-lo, e
disse:
-Estou indo para lhe ajudar,
Kafka, vou jogar o lençol para que você se cubra e pegarei suas roupas para que
possa vestí-las.
É isso que ela faz e depois sai
apressada e assustada do quarto. Não volta por este dia. Ele se põe a pensar
sobre o quanto a agredira em estar daquela maneira posto na cama, talvez mais
que a contusão que teve na cabeça. Como pudera ser tão descuidado, ele se
recriminava, mexendo assim com a mente da sua irmã. Ele não conseguia deixar de
pensar naquilo.
Aguardara o pai chegar e acabar
com ele em um só soco. Lembrava-se de uma vez em que ele tinha seus cinco anos,
e tomava banho com Margaret na banheira, e ambos brincavam até que ela teve
curiosidade sobre seu pênis, e o pegou sem prévio aviso. Quando o pai chegou ao
banheiro e viu aquilo voou sobre o garoto, agarrou-o com tamanha força que o
jogou do outro lado do corredor afora. Parecia que ele estava caindo de um
precipício, com a força da explosão de uma mina terrestre, tamanha a força do
homem. Naquele dia teve a sua primeira cicatriz assinada pelo pai, na cabeça
cortada que sangrara até o hospital.
Pai e major,
ele era assim com todos: muito disciplinado, sempre cumprindo suas obrigações. Seus
trabalhadores eram tratados da mesma forma, através de violência e muita
gritaria. As mulheres da casa também, todas as empregadas, mãe e filha. Sempre
estava vestido com suas botas de exército, e Kafka desconfiava de que ele até
dormia com elas.
Nesta noite não escutou o
jantar, ficou na cama, vestido e com a porta bem trancada, não seria agredido
por ter sido invadido pela irmã. No escuro só passavam as luzes das casas
vizinhas, que chegavam da janela e sumindo antes de alcançar a cama, em seu
ambiente de reclusão.
O que fazer para que não fosse
encaminhado para o lugar que o pai escolhera? O que fazer para que fosse aceito
com o mesmo amor que ele sentia pela família?
A mãe foi até seu quarto, bateu
à porta, chamou três vezes e disse que era a hora do novo corte do cabelo dele.
Desconfiado abriu a porta e recebeu a mãe. Aquele era um momento especial
sempre, seus cabelos tocados pela mãe. Ela estava vestida com camisola já, uma
comum, mas curta. Devia ser bem tarde. Sua mão tocava a cabeça e a testa do
filho, trazendo os fios à ordem que deveriam estar para que ficassem corretos
no estilo tigela. Kafka tinha cabelos lisos como os da mãe, mas os dela eram
mais escuros. Enquanto ela trabalhava, ele a observava pelo espelho admirado e
feliz por poder ter isso só para ele.
Mas não conseguia entender o
motivo do horário, tão tarde para ela vir fazer tal carinho no filho. Algo
estava estranho. Kafka se pôs a desconfiar ainda mais. Observava a mãe com um
corpo jovial e robusto, a ele mesmo com os seus defeitos de monstro, e
entendera tudo, amanhã seria o dia? Não haveria salvação para mim? O que
aconteceria?
Nesse momento o pai chama a mãe
da sala, insistentemente, e como ela o ignora enquanto transforma o filho, ele
chama mais alto e mais alto. Na desafiadora sexta vez ela diz para Kafka:
- Eu preciso atender o pai,
amanhã terminamos isso, ok?
E o deixa com os cabelos mais
curtos à direita, se olhando profundamente, sozinho. Mais uma vez ele a toma
enquanto era o momento dele. Kafka vai até a porta para trancá-la e percebe os
pais na sala, ele abraçando-a por trás e beijando o seu pescoço, enquanto ela
se inclinava toda, com risinhos baixos e encaminharam-se para o quarto.
A noite passa, chega a manhã,
mais uma das difíceis de sair da cama, Kafka está pronto e pretende grunhir um
pedido de término do seu corte de cabelo à mãe, quando sai ao desjejum e
percebe que as coisas estão uma pouco mais rápidas, já que ele se adiantara
para ter com a mãe, tudo servido antes da hora.
As empregadas já haviam posto
tudo na mesa, Margaret estava vestida de maneira graciosa para passeio, cabelos
presos num rabo de cavalo que a deixavam linda, a mãe estava preparada para
sair também, o que dificultaria conseguir a finalização do corte. O pai não
estava lá.
Ele se dirige a mesa em
expectativa de explicações, a mãe não o encara. Margaret começa a falar:
- Hoje você poderá conhecer um
lugar diferente, irmão. Pelo que vimos no panfleto, lá tem gente como você, que
mudou depois de um acidente e gente que já nasceu assim. Você poderá conhecer
pessoas que vão te aceitar e conviver contigo, poderá terminar seus estudos,
que abandonou depois do acidente... tudo será diferente.
O olhar dela era de amor, e
agora ele se amargurava. Ele era um fardo, ninguém queria conviver com ele. Nem
ele mesmo entendia a si, muito menos se aceitava. Neste momento de reflexão ele
vê o pai entrando pela porta da frente, lentamente fazendo a leitura do jornal
e sente-se mal, grunhe e mostra-se revoltado.
A isso, pela primeira vez em
anos, o pai responde:
- Você não tem escolha, a culpa
foi sua! Não devia ter deixado te pegarem aqueles homens. Por isso agora
estamos aqui, em uma prisão onde o Patrão está acima de mim, fez-me perder meu
reino e quase condenou a mãe e a irmã! Você vai, pois ninguém o quer aqui!
Seu cérebro ferve de raiva e
culpa, só consegue pensar em quanto ele poderia ter sido diferente, no quanto
amava a sua família e queria poder mudar tudo, e não pedia muito mais, só a sua
reclusão para não atrapalhar ninguém.
A mulheres tomam seu café com
pesar, menos o pai que lê e mantém a sua posição de pernas cruzadas, peito
aberto, lendo. Só Kafka está sem comer. Ele também não grunhe para não
atrapalhar ao pai.
Dado o fim do desjejum, todos se
levantam e o pai chama Kafka para segui-lo, pois para descer as escadas da porta
principal precisaria que os homens que os aguardavam o descessem. Ele foi atrás
do pai, mas o que faz não é segui-lo, sem pensar em nada ele adianta a sua
cadeira de maneira inesperada e empurra o homem pela porta, que tenta resistir
e empurrar o garoto, mas a força que ele tem vai além de seu corpo, o homem
tropeça e cai escada abaixo, com muitas testemunhas no beco da comunidade.
Quando chega ao chão está
inconsciente, talvez morto. Ele volta para a casa enquanto os homens vão para
socorrer o major. As mulheres olham Kafka de forma estupefata, fogem de seu
contato, ele grunhe pedindo desculpas, mas elas não entendem e correrem até o
fim da escada. O pai estava morto.
À Kafka restou apenas a
resignação do linchamento ao lado do corpo do pai, e o tiro dado na cabeça.
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